6 de Janeiro.
Caro Peter.
Lamento severamente não ter lhe
desejado um porvir de ano bem venturoso em momento mais elegante, que teria
sido nos dias anteriores, quando ainda as comemorações de fim de ano estavam na
atmosfera, com todas suas verdades e mentiras sobre a felicidade e esperança de
dias melhores. Já se fazem 5 meses e dezesseis dias desde que começamos a
trocar correspondências, e honestamente, gostaria de me assegurar que as mesmas
sejam regulares. Em uma atitude de autodisciplina, decidi, nesta segunda feira,
escrever-lhe este singelo e-mail, e aproveitar o ensejo para lhe agradecer as
recomendações sobre repensar a origem de minhas emoções, sobretudo as mágoas, e
aos livros sugeridos. Tenho me alimentado melhor, mas ainda sinto-me receoso de
sair de casa. Sinto que as coisas podem melhorar e sou eternamente grato por
sua ajuda.
Atenciosamente; Matthew.
12 de Janeiro.
Ao meu nobre e verdadeiro amigo.
Peter.
Desejo-te toda a felicidade do
mundo. Pois, certamente há em ti, grande e sincero dom. Escolho o da caridade,
o preferido de São Paulo, para adjetivar sobre ti, caro Peter. Teus conselhos
são verdadeiros e muito proveitosos ao aflito de alma. Neste sábado último,
houve grande progresso. Certos familiares distantes apareceram em visita inesperada,
e não demonstrei nenhuma instabilidade, ao contrário, dei-me a palestrar sobre
os assuntos que domino e amo, como bem sabe. E encontrei em meus parentes bons
e atenciosos ouvintes. Conscientizo-me de que tudo quanto tens me aconselhado e
sugerido é bastante proveitoso. E mesmo sendo uma pessoa tão importante,
preocupa-te com este miserável, porém devoto amigo. Agora compreendo o que
queria dizer São Paulo aos Coríntios, em sua primeira epístola. Acima de
qualquer dom, precisamos ser caridosos, ter o desejo de doar. É isso que tens
me ensinado a exercitar, e o fiz nesta semana. O resultado; um novo Matthew.
Bom companheiro, pronto para se socializar, conversar e de agradável companhia.
Obrigado, Peter. Sem Caridade, nada somos.
Att, Matthew.
18 de Janeiro.
Caro Peter.
Estou novamente sendo assaltado
por pensamentos ruins. Quero pensar que tudo é apenas fruto de uma leve
recaída, mas estou com medo. Não quero regredir, depois de tanto progresso.
Hoje falei sobre você com a minha mãe. Ela veio me perguntar se eu gostaria de
ver alguém no meu aniversário que já se aproxima. Disse sobre você, meu amigo
Peter Ártonus. E sobre a inviabilidade de nos vermos. Quando eu era criança,
imaginava que quando eu estivesse com dezenove anos, seria a pessoa mais bacana
do mundo. Não lamento por isso, lamento por não ser mais criança. Toda a
lembrança da minha infância é ofuscada pelo o que aconteceu. Estou muito
triste, amigo. Lamento não atender à sua expectativa sobre mim.
Um forte abraço, Matthew.
27 de Janeiro.
Obrigado por novamente cercar-me
com plausíveis conselhos, caro Peter. Mas, temo ser um estorvo à ti. Talvez
devessem cessar as nossas correspondências. Obrigado por tudo.
11 de Fevereiro.
Caro Peter.
Desapontei a ti, grande amigo.
Quão fraco sou? Não há como saber. Pois, tal qual é a profundidade de um poço
em contínuo escavar, assim é a minha covardia e miséria. Tentei lançar-me ao
profundo sono, farto de toda esta palhaçada da qual apelidamos “vida”. Mesmo
convencido de tuas sábias palavras, que me exortou e me fez entender que, não
quero que finde a minha vida, mas sim as minhas aflições. Porém, ambos
fundem-se num turbilhão de desapontamentos. Pensei em escrever-te na noite
passada, no entanto, não estava eu com as minhas funções motoras em perfeito
estado, devido as diversos sedativos do hospital. Meu aniversário se aproxima,
Peter. Mas tudo o que sinto é a incessante sensação de que não sou bem vindo
aqui, neste mundo. Não quero alardeá-lo com meus fracassos. Sei que teu dom
caridoso é honesto, mas nem mesmo tu, sendo tão versátil pessoa, podes resolver
todas as coisas. Eu sou um caso perdido. Não te preocupa amigo. Não irei tirar
minha vida por enquanto. Já estou dependente de toda esta maldita melancolia.
Matthew.
21 de Fevereiro.
Peter.
O pesar da minha dor persevera,
meu amigo. E após perder tanto nesta vida, sinto, que por fim, perderei o
equilíbrio de minhas faculdades mentais. Coisas incomuns passaram a acontecer
nos últimos dois dias. Minha mãe disse ter escutado risos femininos em meu
quarto e que teve a leve impressão de ter visto alguém com um cabelo negro como
a noite adentrar ao meu quarto. Sabes que não mantenho contato com quase
ninguém, exceto com alguns familiares e amigos que raramente me visitam. Ontem,
pela tarde, ouvi o telefone tocar, mas não quis atender. Era meu irmão, que
posteriormente disse à minha mãe que uma pessoa com voz feminina atendeu, disse
que eu estava dormindo e que depois daria o recado. Quando meu irmão perguntou
quem era, a suposta mulher simplesmente desligou o telefone. Neste momento eu
estava febril, ainda agora, sinto no paladar o gosto da bílis, resultado da
minha má alimentação. Tenho estado doente quase todos os dias. Não pensei em
escrever-te hoje, mas, agora à poucos minutos estava eu tendo um sonho de não
pouca curiosidade. Estava em uma cidade deserta em meio à um chuvisco de miúdas
gotas d’águas e cinzento céu. Tão melancólico quanto eu. Eis que o chão
abriu-se para me engolir. Tive medo, mas entreguei-me. Quando o fiz, vi todas
as pessoas que amo sendo devoradas por sombras. Tu estavas lá, Peter. Não sei
como é o teu rosto, amigo. Mas a tua presença naquela carnificina era tão real
quanto ao desespero que tive de te perder em meio aos meus. Gritei e me
desesperei para salvar-te e aos outros. Quando então alguém me despertou. A
princípio pensei ser a minha mãe, mas, sua mão em minha testa, alisando o meu
rosto era frio como a morte. Quando finalmente despertei tomei um sobressalto.
Não era a minha mãe e sim uma mulher, com longos cabelos negro e um rosto
indefinido. Desapareceu de repente. Pondo em dúvida a minha lucidez. Sei que
acreditas em mim, caro amigo. Não sobrou-me nada nesta vida para que
encontrasse motivo para troças ou chocarrices.
Seu amigo, Matthew.
22 de Fevereiro.
Caro amigo Peter.
O que irei narrar a partir de
agora, deixou-me tão estupefato quando em ocorrência, quanto agora que lho
escrevo.
Noite passada, ao tentar dormir,
senti um frio repentino abastecer o meu quarto. O aparelho de ar condicionado
desligado e nenhuma passagem de ar disponível fizeram-me entender que algo de
anômalo estava acontecendo. Aí então eu a vi, encolhida e imóvel, no canto do
quarto. Com seus longos cabelos negros ocultando seu rosto. Não vacilava em sua
imobilidade. Tal qual uma estátua. Até que comecei a ouvir certos gemidos.
Neste momento o medo já havia me transpassado e em seguida identifiquei com mui
dificuldade a seguinte palavra; “frio”. Reuni coragem e perguntei:
- Quem é você?
Não houve resposta, mas houve
movimento. Lentamente, o espectro encolhido em meu quarto levantou-se e revelou
um rosto pálido e sem vida de uma jovem. Tão triste quanto a minha vida, seus
olhos estavam lacrimejantes. Parecia ela o final de um filme triste, como a
completa sensação de tristeza. Ficou imóvel, fitando-me, deixando-me nu ao seu
triste olhar. Parecia enxergar a forma do meu medo.
- Todos mentem quando dizem que o
fogo governa o inferno. Só há frio e escuridão na morte. - Disse o espectro
feminino fitando-me, sem pestanejar, nem mesmo respirar.
- Não entendo coisas da morte,
pois não sou morto. Entendo coisas da vida. Mas desejo a morte. - Tentei
dialogar com a entidade que se revelara a mim.
- Por que mentes a mim, visto que
já tenho provado tantas mentiras. Ocultaram-me o frio que existe na pós-vida, e
agora, mentes a mim. Dizendo-me que queres a morte, quando são evidentes os
medos que embotam o teu olhar.
- Quero a morte, não por mera
opção. Sou rejeitado pela vida, esta me insiste em enxotar, tal qual se faz à
um cão indesejado. – Objetei.
- A vida rejeita a todos. Uns
cedo, outros mais tarde. Mas, aqueles que rejeitam a vida não são dados ao
medo. Só se pode sentir medo quando há o amor, daí também provém a tristeza.
Porém, triste ou não, se há amor há também o desejo de vida. – Disse o espectro
de forma monótona, porém determinante, como se já houvesse experimentado mil
vidas.
- Toma-me por mentiroso ou por
covarde? – Perguntei, com mais confusão do que valentia.
- Ter medo não significa ser
covarde. Pelo contrário, aponta para a coragem. Pois somente com a presença do
medo a coragem ganha sentido. És mentiroso, mas não o faz por maldade, e sim
por confusão. Não sabes explicar as origens de teus anseios, e lhes dá sentidos
fabulosos e inverídicos.
Ela aproximou-se de mim como se
não caminhasse e ficou cara a cara comigo, e disse:
- Eu estou aqui agora, para
resolver nossos problemas. Irei mostrar-te um caminho excelente. – Em seguida
beijou-me tão profundamente que pensei ter perdido os sentidos. Tive uma
sensação de vazio extremo, mas, senti-me profundamente amado quando ela disse:
- Chamo-me Alissa. – E
desapareceu.
Isto é o que tenho experimentado
caro amigo. Após isso, o espectro deixou-me e o sono me fugiu. Sei claramente
que sou desventuroso, agora também sou assombrado.
Estas são palavras fiéis e
verdadeiras.
Grato. Matthew.
4 de Março.
Caro Peter.
Entendo claramente sua ânsia por
soluções plausíveis, e honestamente, eu mesmo teria duvidado se não tivesse
vivido o que tenho experimentado nestes tristes dias. Mas garanto-lhe, caro
amigo. Não se trata de alucinações, e sim, cessei de tomar os remédios
antidepressivos, pois eles deixam-me os artelhos inchados.
Não somente a experiência
anterior é verídica, como também, as que se seguiram após nosso contato.
Certa noite, após o ultimo
ocorrido, estava eu ansioso e ao mesmo tempo receoso ao possível contato com
Alissa. No entanto, passaram-se 4 dias sem que nenhum vestígio do espectro
aparecesse. Por fim, fui atacado novamente por uma forte depressão. Parei de me
alimentar de forma regular e no quinto dia estava fraco e moribundo.
Deitado na cama senti Alissa
materializando-se ao meu lado, deitada comigo, encarando-me com chorosos olhos.
Linda, tal qual o além deve ser. Disse-lhe:
- Não te encontrava em lugar
nenhum.
- Não estava encontrando espaço
em ti. – Disse-me Alissa, acariciando-me com seus dedos de gelo.
- Descobri que toda morada dentro
de mim, é para ti. Tenho sido desgostoso da vida. Mas, tua sabedoria e teu
carinho, tem me dado gosto por viver. – Disse eu, descobrindo-me apaixonado.
- Coisa difícil é este
empreendimento. Pode por ventura acender-se uma candeia submersa? Ou habitar as
trevas com a luz? Pode por ventura fazer manutenção da vida quando se deseja a
morte? – Alissa fez estas perguntas rompendo-se em lágrimas em um rosto pálido
e inexpressível.
- Não encontro respostas para
estas perguntas, pois me parecem capciosas e as tenho por um engodo de lógica,
aparentando fácil resposta. Sei que me ajudas. Teu beijo mostrou-me a vida.
Desde aquele dia fui outro homem. Feliz, como nunca antes, forte de maneira
inédita. Tu mesma me ensinaste sobre os conceitos de valentia e felicidade.
Obrigado.
Neste momento Alissa mostrou pela
primeira vez uma expressão em seu pálido rosto, belo e póstumo. A expressão era
de pesar e desesperança. E disse:
- Meu pobre Matt. Tu ainda não
compreendeste o motivo de minha dor. Mas deixa por hora, apenas ama-me. Pois eu
também te amo. E fica tu comigo.
Após isto, todos os dias, pela
noite, Alissa vem visitar-me. E lança-se em meus braços em verdadeiro amor. Não
sinto mais vontade alguma de sair de meu quarto. Mesmo durante o dia, quando
minha mãe roga-me para que eu saia, faça a barba e retome meus estudos. Eu
nego. Só Alissa me importa. E ela, da mesma forma tem mostrado-se menos
melancólica. Até sorri. Acho que encontrei o fim dos meus lamentos.
Muito obrigado pela atenção, meu
amigo Peter.
Att, Matthew.
15 de Março.
Caro amigo Peter.
Sei que o espantei, severamente,
sob diversos aspectos no ultimo e-mail que lhe enviei. Estou novamente
internado, já se fazem 4 dias, e somente hoje minha mãe trouxe o notebook para
que possamos nos comunicar.
Continuo vendo Alissa
regularmente, sempre que estou com ela, sou tomado por tão forte emoção que em
seguida, sinto que uma parte da minha vida foi embora. Tal é meu amor por minha
amada. Mas não temo, ela sempre vem. Mesmo aqui no hospital. Ela foi flagrada
pelas câmeras de vigilância, os funcionários do hospital estão com medo, pensam
que ela os fará mal. Alissa me disse que eles perdem tempo em pensar que fará
mal à eles, e que o único objetivo dela, sou eu. Tenho vivido momentos muito
bons com ela, nobre amigo. A fraqueza de minha saúde importuna-me até mesmo
agora, para digitar-te estas palavras com o uso do notebook. Mas não quando estou
com Alissa. Ela me diz que o meu amor alimenta-a e a tem tornado forte. Isso me
deixa feliz, pois, assim ela poderá me proteger. Gostaria de falar mais, amigo.
Mas estou terrivelmente debilitado.
Seu amigo, Matthew.
18 de Março.
Amigo Peter.
Existe a grande probabilidade de
que eu vá me unir à Alissa. E quero que saiba que vi grande sentido e entendi
claramente o teu raciocínio. Sei que Alissa sobrevive de mim e está drenando a
minha vida. Mas, contesto se isso de fato é algo ruim. Pois agrada-me a doce
companhia de minha amada.
Mas confesso estar bem pensativo
a respeito de teus conselhos, e, só por isso, Alissa já se mostrou melancólica.
Entendo claramente o que está
acontecendo, caro amigo. Sei que a escolha de viver ou morrer está em minhas mãos.
Alissa concordou com estas tuas palavras, disse-me que tenho até o dia 20, para
escolher o que quero. Após isto, deixarei esta existência.
Matthew.
19 de Março.
Agradeço por tuas sábias
palavras, Peter. Elas são de grande valia para mim. Entretanto, na multidão de
tua sabedoria, meditarei em uma parte especial de tuas palavras. Afinal, não
somente Alissa, mas também você, tem se importado grandemente comigo. Então
meditarei nas tuas sábias palavras, amigo.
“Sobreviver às trevas, à
tormenta, ao inferno... Mesmo que a luz tenha se ausentado dos olhos, mesmo que
toda a tripulação tenha morrido, mesmo que todas as almas tenham perecido...
Sobreviver a isto significa transcender.”
30 de Março.
Meu nobre amigo Peter.
Quero te agradecer pelo teu
comprometimento com a nossa amizade. Perdoe-me a demora para responder-te e
fico muito feliz por tua notável preocupação para comigo. És um amigo de
verdade. Encontro-me razoavelmente sem tempo, reiniciei meu curso
universitário. Tenho bastante coisa para relatar a ti, caro amigo. O farei em
breve.
Com muita estima. Matthew.
3 de Abril.
Caro amigo Peter.
Era para eu ter chegado em minha
casa algumas horas atrás, porém, estava a conversar com bons amigos. Você ainda
é meu grande amigo, caro Peter, se hoje tenho outros, devo a ti sinceros
agradecimentos.
Quero relatar-te o fim que se deu
na minha sinistra história com a entidade alcunhada por Alissa.
Entendi que devia eu decidir-me
pela vida ou pela morte, esta ultima apresentou-se tentadora, na forma de uma
jovem acolhedora, compreensível e sedutora. Esta drenava-me a vida com seu
encanto, fazendo-me adoecer e vegetar. Mas pensando em tuas sábias palavras,
tive de falar sério assunto com Alissa.
Ela disse-me que o fato de eu ter
compreendido mostrava-se uma evolução, e revelou saber toda a desventura que
lançou-me naquele estado de depressão. Descreveu com singular precisão o dia do
acidente, quando eu dirigia naquela chuva e, meu melhor amigo, e minha namorada
perderam a vida por minha imprudência, como bem já relatei a ti.
Alissa representava o meu medo,
minha raiva, e meu pesar. Apeguei-me a tudo isso e tornou-se o meu vício. Tudo
isto drenava-me para o inferno. Gelado, como a própria sedutora Alissa
descrevera.
Tive que abandoná-la, como bem me
aconselhaste. Larguei a morte e inclinei-me à vida. Hoje, tomei coragem e
visitei os parentes das vítimas. Chorei deveras, nobre Peter. Encontrei
consolo, achei que não era digno, vi, de relance o reflexo de Alissa no espelho
e lembrei que a decisão de seguir em frente é apenas minha.
Antes de ir embora, Alissa me
disse que há de fato outros planos de existência e disse que eu terei uma
louvável pós vida, se eu migrar nesta direção de evolução, superando todos
estes demônios do passado e procurando sempre fazer o bem. Despediu-se para
nunca mais voltar.
Matthew.
12 de Abril.
Deverei desembarcar no aeroporto
por volta das 15 horas, nobre amigo. Fiquei feliz pelo convite e iniciativa
para que nos conhecêssemos. Estou tomando a liberdade de levar Eliza comigo.
Estamos namorando, penso que ficará feliz em conhecê-la. O tempo está ótimo,
poderemos ir à um bom restaurante pela noite. Aproveitarei e falarei sobre a
ONG da qual faço parte junto de Eliza. Um forte abraço e até breve.
Matthew.